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Saturday, March 3, 2012

Poética do Abandono- Exposição Fotográfica e Pesquisa Etnográfica


Exposicion in partnship with Dr. Marcos Veríssimo. SESC 2006.
Credits: Research and Text Marcos Veríssimo
Photo and Production Natalia Amorim


A Poética do Abandono
Marcos Veríssimo


“Tudo é graça o que dela se pode dizer”. Tais palavras teriam sido ditas por Tomé de Souza, português de família nobre e consolidada na Lisboa do Século XVI, que à época respirava ares cosmopolitas. Noentanto, nada disso o impediu de atender ao Rei de Portugal e embrenhar-se em uma terra distante, estranha, e da qual se diziam coisas horríveis e assustadoras, tais como seres sobrenaturais e nativos antropofágicos. Chegou àquela terra ainda recém descoberta em 1549, já como governador-geral da Capitania da Bahia e de todas as outras, trazendo consigo os primeiros missionários da então recentemente fundada Companhia de Jesus e um Regimento que centralizava boa parte do poder em suas mãos.
Essas palavras, ditas nos idos de 1553, se referem àquela que, por sua vez, viria depois ser chamada de Bahia da Guanabara, numa das constantes visitas do militar pelas várias capitanias.

Já o etnógrafo belga Claude Levi-Strauss, quatro séculos mais tarde e tendo como referência adicional o panorama aéreo da Guanabara, parece discordar totalmente de Tomé de Souza, dizendo que a Baía da Guanabara se assemelha a uma grande boca banguela. Cantada em verso e prosa, parte da entropia tropical do Rio de Janeiro, pode ser bela, pode ser feia, pode ser rica, pode ser pobre – enfim, pode reunir em sua extensão a iluminada abundância e a graça do Pão de Açúcar frente à Enseada de Botafogo com a escassez escura e desdentada de suas zonas malditas.

Com o intuito de oferecer uma contribuição para a multiplicidade dos olhares possíveis para este contexto há tempos presente na história e nas artes, esse ensaio fotográfico procura colocar em foco uma entre as várias realidades observáveis da baía, onde podemos encontrar o entrelaçamento do belo com o feio, da graça e do lixo, onde algo que podemos nomear como um sentimento de abandono encontra alguma materialidade nas pessoas e nas coisas, na cultura e na natureza. Fazendo dessa maneira, nosso pensamento vai muito além da idéia de exclusão, para mostrar que estamos todos incluídos, senão de maneira visceral, ao menos de maneira periférica, numa geografia excludente onde os grandes centros de consumo enviam para o seu entorno o refugo daquilo que consomem – transformando, destruindo, para construir novos visuais sobre antigas paisagens.

Pertencente ao município de São Gonçalo, zona metropolitana do Rio de Janeiro, a Ilha de Itaoca fica na margem leste da Baía da Guanabara, separada do bairro gonçalense de Fazenda dos Mineiros pelo Canal Imboassú. Precisamente localizada na periferia da periferia da sociedade de consumo, seu território abriga ainda áreas de proteção ambiental, sítios arqueológicos e a Capela de Nossa Senhora da Luz, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – esta, cuja imagem é parte integrante da exposição, foi erguida na época do Brasil Colonial, na então Fazenda da Luz, construída pelo também militar português Francisco Dias da Luz nas terras que recebera como Sesmaria por ter participado, ao lado de Mem de Sá, da vitoriosa campanha que expulsou os franceses do Rio de Janeiro ainda em 1567.
Uma única linha de ônibus regular faz a ligação da Ilha com o bairro niteroiense do Barreto, passando pelo centro de São Gonçalo – e pára de circular por volta das 23:30 (quando não antes disso), deixando ainda mais isolado o local. Nos dias de chuva um pouco mais forte, carros de pequeno porte ficam praticamente impossibilitados de passar na (única) estrada de chão que corta o mangue para levar à (degradada) Ponte do Rodízio, pela qual se entra em Itaoca. À noite, quando uma pesada escuridão se faz presente, os cerca de seis mil habitantes de Itaoca, em casos de emergência, encontram sérias dificuldades de condução para chegar ao pronto socorro da cidade.
O abandono da Ilha de Itaoca é social, político, ambiental, além de ser também um abandono em relação ao seu próprio passado – quando o lixo ainda não impregnava a paisagem, o pescado era muito mais abundante, e a vida social era consideravelmente mais intensa. Boa parte das pessoas que lá vivem ainda tentam obter o seu sustento da pesca de várias espécies de peixes, siri, camarão ou catando caranguejo no que resta do manguezal cada vez mais mal tratado pela poluição. Para se ter uma idéia, o missionário francês Jean de Lery – que esteve com Villegagnon na Guanabara por ocasião da França Antártica fundada no primeiro século de povoamento europeu da costa brasileira – achava que os peixes eram infinitos.
No povoado da Praia da Luz, durante a década de 1960, havia cabarés, hotéis, e um intenso ir e vir de pessoas de todos os tipos, atraídos por um isolamento ainda idílico, quase rural, e pelo contato com uma exuberante natureza que se exibia na época. Eram hyppies, foragidos da perseguição política e até personalidades mais ou menos famosas, a exemplo da ex-vedete do teatro de revista Luz Del Fuego, que morava na próxima Ilha do Sol, onde praticava o nudismo junto a convidados ricos, educados e influentes. Hoje, na Praia da Luz, os quiosques se destacam na paisagem poeirenta, e o único hotel que restou ainda é o refúgio para casais que vêm de fora, motivados justamente por um isolamento que não é mais idílico e pelo preço baixo do período (R$ 10,00) para seus encontros amorosos às escondidas.

Porém, retratar o abandono na Ilha de Itaoca não é apenas mostrar casas abandonadas e o que restou de velhas embarcações de pesca encalhadas na areia suja da Praia da Luz. Nos domingos e feriados de sol, as praias da ilha são invadidas por levas de banhistas que barbarizam nos ônibus atulhados, lembrando a imagem dos velhos navios negreiros. É também estar aberto à contemplação de uma generosa paisagem natural que se estende desde o compacto verde do que restou de sua vegetação até os contornos mais distantes de seus horizontes (que se mostram relativamente próximos). Como se pode ver, debaixo do sol a pino de um dos dias mais quentes do ano, não há simplesmente desolação, sujeira e descaso. Ao longe, e através da névoa da umidade do ar, podemos avistar a Serra dos Órgãos e o Dedo de Deus, um cenário que o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, ainda no século XIX, comparou a um imenso anfiteatro de “montanhas vaporosas”. Mais próximo avistamos a Ilha de Paquetá. Podemos reparar também a Capela, muito bem cuidada e na contramão do sentimento de abandono.
Retratar o abandono com todas estas considerações em mente, há de ser, sim, uma poética, não só por colocar à frente de nossos olhos a beleza que emerge de uma natureza que insiste em sobreviver a todos os maus tratos sofridos ao longo de anos. Nem o será, tão pouco por ressaltar as retas e frestas da mais bela arquitetura dos mundos perdidos. Enfim, a poética do abandono é um poética no sentido aristotélico dado ao termo grego “poiesis”, que designa o conhecimento produtivo. Retratar o abandono é valorizá-lo em sua condição de pano de fundo sobre o qual aparecerá a criação e recriação do próprio mundo por parte dessas pessoas, não apenas abandonadas à própria sorte, mas antes de tudo refinadas em suas explicações e estratégias para articular um domínio da situação adversa brevemente descrita acima. Nem que o domínio almejado venha ser apenas um domínio sobre a própria condição de dominado.
Em suma, o que se pretende aqui é a construção de um ponto de vista que nos permita enriquecer o debate que se trava em torno do lugar e do papel da Ilha de Itaoca na geografia, na cultura e na história, sem esquecer de sua relação com o complexo sistema da Guanabara. Além disso, devemos também, a partir dos diferentes discursos que surgirão em torno dessas imagens, trabalhar em torno da conceitualização sociológica do termo abandono, afastando-o, obviamente, de sua conotação literária, ligado ao romantismo e a uma certa nostalgia herdada de nossas raízes lusitanas.

O lingüista suíço Ferdinand de Saussure afirmou que “é o ponto de vista que cria o objeto”. Ao concordarmos com tal colocação, acreditamos poder ser a poética do abandono um ponto de vista para a criação de um interessante objeto para qualquer ciência que venha se preocupar com a relação dos homens entre si e com o mundo que lhes é dado viver.